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DE LUNGA À ARTHUR FLECK: NOSSOS ANTI-HERÓIS ESTÃO NA SALA DE VISITAS

  • Writer: carmem cortez
    carmem cortez
  • Oct 11, 2019
  • 6 min read

Cena de BACURAU, filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles, 2019

Cena de JOKER, filme de Todd Phillips, 2019

O mundo está muito louco. Bondade, cordialidade, empatia estão perdendo terreno para o ódio, rancor, mais dor ... falta de compaixão.

Faz uma década ou mais que se soube de um índio que confundido com um mendigo, foi queimado vivo. E qual o motivo? Nenhum. Nada explica essa barbárie. Nada justifica.

De lá pra cá, poucas coisas mudaram esse cenário de crueldade. Ao contrario. O tempo foi passando, e com ele mais notícias de igual teor se multiplicaram.

Um carro com uma família foi crivado de balas com 80 tiros.

Parlamentares são assassinados, ou impedidos de assumirem seus cargos legislativos porque correm/correram risco de vida.

Constrói-se muros impedindo que famílias possam buscar refúgio, e oferecer a si e aos seus uma vida um pouco mais digna, com oportunidades e possibilidades mais igualitárias e justas.

O mundo está desabando e sobre nossas cabeças paira uma nuvem de chumbo. Dias de horror é a expectativa cada vez mais real.

E se é assim na vida cotidiana, seja nesse ou naquele país, não é de se espantar que surja uma quantidade expressiva de filmes que reflitam essa 'onda' de terror.

Não falo dos filmes de guerra, tampouco dos documentários - esses são a tradução mais acurada dos fatos - mas os ficcionais parecem estar investindo nesse 'formato'. Um 'formato' que se assemelha a alguma referencia cotidiana já vista de perto, ou lida/ouvida nos noticiários.

Há alguns posts atras, escrevi sobre tres filmes (asiáticos) em uma única resenha. Em um determinado parágrafo, o diretor de um filme sul-coreano deste mesmo post, ao dar uma entrevista a um jornalista brasileiro, relatou que "o ódio que a juventude sente nos dias atuais, o levou a fazer o filme". Quando estamos cercados de tanta 'loucura', parece que precisamos de um antídoto que nos alivie a pressão que a realidade nos impõe. Torcemos para que algum HERÓI, ou até mesmo um ANTI-HERÓI nos salve ou nos expurgue do mal que estamos nos acostumando a conviver.

Quando (vi) LUNGA (personagem de Silvero Pereira do filme BACURAU, de Kleber Mendonça e Juliano Dorneles, 2019), entrando em cena e salvando a cidade dos ataques vis aos quais seus habitantes vem sofrendo, ele não o faz sozinho, mas é à ele que o povo recorre. E com sua garra e determinação, e acima de tudo, sua destemida coragem, limpa e bane o mal que ali entrou, não se sabe muito bem nem como nem porque.

Em "UM ELEFANTE SENTADO QUIETO" - filme que está no mesmo post junto a outros dois asiáticos, a moral da história nos faz pensar em sobre o fato de estarmos todos sentados de braços cruzados, assistindo quietos as crueldades que nos cerca. E se juntos pudermos mudar, que isso seja feito agora. E deve ser urgente, imediato. Uma atitude de mudança. "Porque deve haver algo além e diferente disso tudo que está aí, e devemos ir lá e olhar" (a frase entre aspas não é textual, mas é a frase dita por um dos personagens do filme chinês de HU-BO.).

Seja pela força do todo, grupo, ou pela atitude individual, o ser humano sempre esteve intrinsicamente se movimentando em luta contra a iminencia da 'morte'. A explosão de um surto, por exemplo, pode ser a pulsão que leva o indivíduo a sair do 'estado' de morbidez, impulsionando-o a lutar pra sobreviver ao 'CAOS', e reorganizar-se emocionalmente, voltando à 'vida'. Seja pela força do grupo (BACURAU), ou pela do indivíduo (JOKER), os ANTI-HERÓIS estão vindo nos salvar e nos tirar daquela sensação de que cada dia estamos perdendo uma batalha.

Tanto o LUNGA de BACURAU quanto o ARTHUR FLECK de JOKER, não são os heróis fabricados como no cinema do passado, de carater ilibado, bons mocinhos, bem nascidos e bem criados, que amam o próximo, seguem as leis divinas que alguem cunha com aquelas citações que a maioria de nossos antepassados, de alguma maneira, forjou em nossas personalidades ditas 'civilizadas'. Lunga e Arthur são os semideuses, de carne e osso, de matéria-prima da qual todo homem é feito: o bem e o mal, o torto e o reto, o belo e o feio, o são e o insano. O 'Não Matarás', não está tendo tanto peso assim como propunha-se nos dez mandamentos.

Lunga está refugiado, longe da cidade, escondido, e sua cabeça está a prêmio. Mas é ele quem arruma a bagunça feita pelos estrangeiros, é ele quem coloca o rei em 'xeque', e o rei deste filme está nu. Literalmente nu, se é que voce me entende, se voce viu o filme (prefeito e a última cena em que este personagem aparece).

Arthur, o Joker, tem desordens mentais fruto de uma infancia cruel, e cresce sem saber muito bem como ocupar o seu espaço, bem como ocupar um espaço como cidadão de Gotham City. Não ocupa lugar algum, não é um ser humano, porque é esquisito - seu transtorno mental o faz rir em situações de raiva, ansiedade ou apreensão, numa espécie de síndrome de tourrette. E é ele que apesar de camuflar o rosto pela pintura pesada com a qual os palhaços utilizam como uma máscara, desmascara os hipócritas de uma sociedade construída nas bases de uma supremacia, seja a do rico sobre o pobre, a do salutar sobre o adoecer...

Em JOKER, quando os pretensos bons moços, bem nascidos causam constrangimento a uma unica mulher solitaria num vagão de metro levam a pior, a população entende que não se faz revolução, não se quebra paradigmas culturais sem se 'quebrar' algumas vidraças, queimar algumas latas de lixo ... não se tira ditadores do poder produzindo um 'levante' sentados pacificamente no chão da rua, pedindo ao ditador deixe 'gentilmente' o lugar que ocupa.

Guerras nunca serão combatidas com flores ou sinais de 'paz e amor' com as mãos. Não foi assim com ditadores depostos no Oriente Medio. Não foi assim na guerra do Vietnãn. Alias, vendo as cenas finais de BACURAU onde LUNGA lidera a 'insurgencia', me veio a referencia de como os VIETCONGS venceram os americanos com parco armamento bélico e suas 'casamatas'!!

Assim como em Bacurau, em Joker, não haverá saída para Arthur Fleck sem sua própria revolução! Sem o seu confronto e seu arrebatamento. Quando ele permite à loucura irromper e aflorar, ele é mais confiante, ele é mais crível para ele mesmo. Ganha confiança própria e dos outros 'palhaços' - afinal, é assim que o futuro candidato à prefeito da cidade chama seus potenciais eleitores - de palhaços!

Eu poderia entrar aqui num discurso politicamente correto de que os 'fins não justificam os meios', ou que nenhuma forma de violencia trará o resultado da tão esperada 'paz na Terra aos homens de boa vontade', mas não pretendo distorcer o que a catarse nos dá. Ainda que nossos superegos nos freiem, os filmes serão nossos divãs silenciosamente deliciosos.

Joker vira um HERÒI! Lunga vira um HERÒI!

Jong soo, o personagem do filme sul-coreano "BURNNING", aquele de um post atras, em que o diretor disse ter se inspirado no ódio da juventude para fazer o filme, consegue finalmente terminar seu romance, após um breve, digamos, 'colapso libertador'.

O mundo está desconstruindo-se no sentindo de ruir-se, e os ANTI-HERÓIS do cinema estão quebrando nossos paradigmas de 'salvadores da pátria'.

Porque Bacurau é importante?

Porque é impossível não associá-lo a referencias políticas, sociais, sócio-políticas, ou talvez lembrar dos fatos que ainda ardem na memória de muitos de nós.

Bacurau é a própria droga alucinógena que traz à tona a epifania de que 'SE ERGUES DA JUSTIÇA A CLAVA FORTE, VERÀS QUE UM FILHO TEU NÃO FOGE À LUTA...'

Porque Joker é um filmaço?

Joaquin 'Joker' Phoenix foi o melhor vilão que conheci. E eu o encontrei em "Gladiador" (Ridley Scott, 2000).

O filme Joker tem suas justificativas, identifica os porquês, mas é pelo Joaquin Phoenix que vi em "Gladiador", que fui ver o filme de Todd Phillips. E que me fez torcer por um 'vilão', como a multidão que o aclama no terceiro terço da obra fílmica.

Porque o que se quer no final das contas é um delírio de triunfo do bem sobre o mal, no coletivo e no particular. No inconsciente coletivo - no social. No grupal e no individual.

Porque Joaquin Phoenix brilha na caracterização física que o personagem requer, e porque nas duas risadas que ele constroi, o publico entende que uma difere da outra, e onde uma e a outra estão respectivamente contextualizadas.

Porque Bacurau é um filme que nos representa em todos os sentidos, e nos faz ter orgulho de ser aquele brasileiro que entrou pela porta da frente. Ovacionado por longos minutos num dos festivais mais tradicionais e de prestígio do mundo - CANNES, e por tabela ainda levou o premio do juri do mesmo festival.

Porque Joker, assim como o nosso filme, também foi aplaudido de pé por longos oito minutos, conseguindo arrebatar Veneza e levar o LEÃO DE OURO de melhor filme.

De Lunga à Arthur Fleck, os anti-heróis andam frequentando nossas salas de visitas, e a sensação é que estavamos precisando mais deles do que nossos antigos heróis de papelão, inventados e mantidos na imaginação débil que a perfeição pueril (e utópia) produz e permite.

Arte: "Bacurau 17 km. Se for, vá na paz"

Festival de Veneza 2019. Joaquin Phoenix e o diretor Todd Phillips

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