QUE HORAS ELA VOLTA / 2015 / Brasil / Drama / 116' / Anna Muylaerte
- carmem cortez
- Aug 27, 2015
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Regina Case e sua personagem Val, após saber que a filha entrou pra faculdade
Val é uma empregada doméstica que trabalha em uma casa de família paulistana, composta de pai, mãe e um filho.
Val não é só uma serviçal nessa casa - ela é também cúmplice, companheira. E é pau-pra-toda-obra. Lava, passa, cozinha, rega as plantas do jardim. Val é ótima. Val é tão familiar a esse grupo familiar, que se movimenta quase sem ser percebida. Se não fosse é claro, por uma ou outra troca de palavras - nada de mais, entre seus patrões.
E Val leva uma vida sem sobressaltos, sem surpresas, sem estranhamentos. Assim também como o resto da casa e seus componentes. Sua presença é como um móvel da sala, uma poltrona ... um 'fantasma'. Mas esse 'fantasma' está prestes a participar de uma maneira mais enfática na mesa de jantar, durante a refeição costumeira. Esse fantasma sairá do espectro que lhe habita o perispírito, e ficará mais evidente, terá contornos mais 'visíveis' que apenas sua silhueta sutil, desenhados através da presença de sua filha, que vinda do interior do Nordeste, pretendendo prestar vestibular e ingressar numa faculdade, que ja se sabe de antemão, é uma das mais difíceis.
Esse 'fantasma', esse outro 'fantasma' chamado Jessica (a atriz Camila Mardela), é uma pequena pedra no sapato da burguesa e 'tolerante' família de classe media alta que habita tantos lares de tantos 'brasis' espalhados por aí. A familia 'leniente' e permissiva em ter a doméstica como um quase membro. A família condescendente em 'permitir' uma filha de empregada entre os seus.
Os fantasmas dessa Nova Era de bolsas famílias, de Sisus, põe em risco a 'cidadania' da classe abastada. Põe em risco o 'establishment' ao saber que a filha da empregada também pode ser uma estudante universitária.
"QUE HORAS ELA VOLTA" instiga-nos a essas pequenas discussões sobre nossa eterna "casa-grande-e-senzala", e também revela outra camada. A atuação de Regina Casé (Val) que nos incita a essas reações 'reflexivas-ideológias'. Nos joga nas inquietações das indagações do universo da moral burguesa. E o filme é dela. Muito embora tenhamos um time afinadíssimo abrilhantando o elenco, é Regina Casé quem marca o gol.
É lindo de ver a personagem dela entrando na piscina, com a agua pelo joelho, comemorando a derrota da desfeita, desonra aos que viveram e vivem ainda o peso de uma subserviência quase escravocrata. Ali não é só a vitória da Jessica; é uma comemoração sobre a derrota de todos os achincalhes de um manequeísmo que acaba sempre colocando o pobre em condição de inferioridade, ainda que se saiba quais são os caminhos eficazes para uma sociedade justa e equilibrada.
O filme de Muylaerte não desfila só reflexões sociológicas ou o que mais possamos conceituar. Ele desnuda um elo psicológico poderoso que une os personagens. Assim como em "DURVAL DISCOS", filme da mesma diretora de 2002, onde o personagem-título é solitário e entrega-se com dedicação à arte da música atraves dos discos, os personagens desta história, todos sem exceção são sozinhos juntos. E todos estão sentenciados à uma solidão surda.
O marido, Carlos (o ator Lourenço Mutarelli), de Dona Bárbara (a atriz Karine Teles), no auge do desespero do seu abandono, graceja à filha de Val um pedido inusitado.
Dona Barbara se ocupando de frivolidades, e /ou muitas tarefas de sua vida frenética de afazeres que é pra não enxergar que seu lar é como um castelo de cartas agigantado e frágil.
A própria Val que sonha em ter sua filha por perto, despejou todo o amor que guardara para filha, na relação com Fabinho (o ator adolescente Michel Joesas), filho de seus patrões. Este último também solitário por razões obvias.
Assim também acomete Jessica do mesmo 'mal' do restante dos personagens, que percorrendo a mesma 'estrada' de sua mãe, deixa pra tras aquele que é objeto de seu afeto maior. Tal qual o faz sua mãe, quando larga o lugar onde vive em busca de uma oportunidade melhor de vida.
O Fabinho dono da frase "QUE HORAS ELA VOLTA" (o ator mirim Audrey Lima Lopes), dito logo no início do filme, indicando que a presença materna não é o ponto forte na construção de sua relação familiar.

Mesmo que todos estejam sentados reunidos na mesa de jantar, continuam degustando suas vidas solitárias servidas na tela de seus celulares.
Mas Anna Muylaerte não está, ao que parece, preocupada em estancar o sangue que jorra das feridas da alma humana, quer seja pelo aleijão social que isso possa causar, ou pelo distanciamento de entes dentro do mesmo espaço, separados pela falta de habilidade interacional.
Ela quer contar uma história de fatos. De tantos fatos iguais a esse que qualquer um de nos ja teve a oportunidade de presenciar, ouvir falar.
Uma história sensível e delicada de pessoas ... ricas, pobres, plebeias, nobres...
Um filme sensível, um filme leve apesar da possibilidade de que nossas elocubrações possam suscitar.
E vale (rever) inclusive e ainda mais por ter sido nosso indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
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